Menu
Maputo
“A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do homem”, estabelece o artigo 3.º da Constituição da República de Moçambique.
Sem preocupação de muito rigor, podemos conceituar o “Estado de Direito” como o Estado cuja actuação se subordina ao Direito, devendo os seus actos prever-se, conformar-se e fiscalizar-se de acordo com normas aprovadas por organismos competentes, de acordo com mecanismos também previamente fixados. A construção desse “Estado” na República de Moçambique é um caminho que começou já com a proclamação da independência nacional e concomitante constituição da República Popular de Moçambique e que ainda se trilha no momento presente, com os “solavancos” próprios de um País com apenas trinta e seis anos de existência. Note-se que desde o ano da criação da República Popular de Moçambique (1975) até o ano de 1990, o País viveu sob a vigência da chamada “Constituição de Tofo”, nos termos da qual, o Estado era guiado pela linha orientadora da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) partido único, instituído como o único representante das aspirações do povo moçambicano. O texto constitucional de 1990 veio indicar novo rumo no figurino jurídico político moçambicano ao instituir o multipartidarismo e reconhecer um conjunto de direitos, liberdades e garantias fundamentais, contribuindo para um decisivo e importante avanço na construção de um Estado que actua sob a Lei, que é fiscalizado nos termos e com base na mesma Lei e que responde nos termos da mesma perante o seu povo. De lá para esta parte merece ainda destaque a revisão constitucional ocorrida em 2004 que se apresenta, contudo, como uma reafirmação dos ideais de 1990, sem apresentar grandes alterações na base do sistema jurídico-político moçambicano. Mas, a que propósito vem esta introdução jurídica deste pequeno texto? Vem ela a propósito de uma certa sensação que parece estar a se generalizar na sociedade moçambicana: a sensação de que enquanto aos cidadãos se exigem diversos sacrifícios, enquanto a estes se exige o estrito cumprimento das leis (sob a constante ameaça de penas e até repressões policiais e outros mecanismos intimidatórios), os detentores do poder político e de altos cargos na estrutura do Estado parecem ter a liberdade de andar à margem da Lei. Tem sido constante a tentação de transformar todos os actos dos ocupantes de cargos de chefia no Estado em exclusivos actos do Rei, actos políticos que podem ser tomados e executados com o suporte exclusivo da “legitimidade política” (uma ficção, ela própria, de contornos extremamente ténues e bastante duvidosos) à margem do ordenamento jurídico que supostamente a todos devia cobrir e que todos deviam cumprir. Constrói-se e consolida-se, com a atitude de certos dirigentes, a nociva ideia de que o Direito é a voz do poder para os seus súbditos, não estando o próprio poder vinculado a ele. Um exemplo actual e bastante elucidativo foi o que ocorreu com a nomeação, pelo Ministro do Interior (correspondente a “Ministro da Administração Interna” em outros quadrantes PALOP), do Director Nacional da Polícia de Investigação Criminal. O Qualificador Profissional do Director de Investigação Criminal e do Chefe de Departamento de Instrução e Investigação, aprovado pelo Conselho Nacional da Função Pública em 03 de Agosto de 2004, estabelece expressamente como um dos requisitos obrigatórios e cumulativos para o cargo de Director de Investigação Criminal “possuir, no mínimo, o nível de licenciatura em Direito ou equivalente”. Ora o nosso bom ministro decidiu então nomear um cidadão, funcionário do Ministério do Interior, que ainda frequenta, à presente data, o quarto ano do curso de licenciatura em Direito. A nomeação criou muito mal-estar nos circuitos atentos da imprensa e do mundo académico moçambicanos. Foram dezenas de artigos nos principais jornais da praça e debates televisivos sobre o assunto que, na verdade, não davam em nada. Interpelado por certa imprensa para explicar esta grave ilegalidade o Ministro reconheceu a mesma mas rematou: “vou mantê-lo porque ele tem experiência!” Ficou assim claro que aquele acto já não era mantido por ignorância ou falta de atenção por parte do Ministro. O motivo da manutenção do acto era claro: o Ministro conhecia a lei mas deliberadamente não a queria cumprir! Esse golpe frontal e manifesto ao jovem estado de Direito moçambicano só veio a sanar-se meses depois quando o Ministro, já farto das críticas e do falatório popular, decidiu exonerar o Director e substituí-lo por outro com os requisitos legais. Um exemplo concreto e que parece minúsculo, mas que revela, de modo claro, a tensão que parece existir entre o mundo perfeito da estrutura jurídico-legal do País e aquilo que representa o dia-a-dia da actuação dos detentores dos cargos do poder político. Por lei, o Estado deve subordinar a sua actuação aos comandos legais sendo que é dos altos dirigentes da nação que se espera ver esse exemplo. Os altos dirigentes da Nação à altura da sua tomada de posse, juram respeitar e fazer respeitar a Constituição e as leis, pelo que é de difícil entendimento o facto de ser justamente alguns deles a atropelar de modo manifesto e despreocupado essa constituição e essas leis. As causas deste modo de actuar mergulham-se em raízes profundas que não temos agora a pretensão de conhecer por completo muito menos de poder abordá-las neste pequeno texto de opinião. Uma delas pode dever-se à pura ignorância e deficiente cultura jurídica de certos dirigentes, os quais, escolhidos na base exclusiva da confiança política, pouco sabem e em pouco se preocupam por conhecer a legislação que rege a sua actuação. Não se pretenderá que todo e qualquer dirigente seja exímio conhecer de todas as leis do seu País – qual jurista! – mas que aquele que aceita servir o Pais num alto cargo dirigente se esforce por dominar um conteúdo legal mínimo e se faça rodear de técnicos capazes de assegurar a legalidade da sua actuação. Outra das causas pode ser, como antes notámos, a permanente tentação de entender todos o actos dos altos dirigentes do estado como actos políticos que, nessa qualidade estariam isentos e qualquer fiscalização quanto à sua legalidade. Não se defende, obviamente, a completa jurisdicização da política – como com espanto em certa campanha eleitoral num dos PALOP um dirigente pretendeu, levar à cadeia todos os que governam mal o País! – mas sim perceber que existem certos actos enquadrados no conjunto de competências dos dirigentes políticos que se encontram sujeitos a formalismo legais de carácter imperativo. A desobediência de tais formalismos e de tais preceitos devia ter sanções para o dirigente. Sanções essas que também se concebe que sejam meramente políticas e que estejam na discricionariedade do titular hierarquicamente superior. Na verdade, o povo tem dificuldade em perceber porque é que as suas infracções são severamente punidas ao passo que as deliberadas prevaricações dos dirigentes políticos passam sem qualquer reparo e muito menos qualquer sanção. A construção do Estado de Direito passa mormente pela assumpção da “cultura de legalidade”. Essa assumpção deve vir do topo à base, no entendimento de que o edifício jurídico construído para reger o Estado não é apenas um conjunto de normas destinadas a regular a actuação do povo, dos menos fortes, mas sim um conjunto de normas que a todos vinculam e por todos devem ser cumpridas. O edifício jurídico não aparece como mera ficção desligada da actuação do dia-a-dia antes devendo enformar e consubstanciar essa actuação. Por outras palavras, precisamos todos de entender a necessidade de ultrapassar a ideia de “estado de direito” visto como mera ficção, como algo que só está nas leis para assumi-la como ideia reitora da nossa actuação: um Estado de Direito que se realiza na nossa actuação. Gil Cambule
0 Comments
A propósito das medidas do Governo Moçambicano para mitigar os efeitos da crise financeira mundial4/12/2011 Confrontado com as violentas manifestações populares dos dias 1 e 2 de Setembro de 2010 contra a subida do custo de vida, o Governo moçambicano veio a público anunciar um conjunto de medidas que, no seu entender, respondiam às inquietações populares. Entre as referidas medidas, o Governo decidiu manter o subsídio às gasolineiras, introduziu o subsídio às panificadoras e criou o subsídio ao arroz de terceira. Com estas medidas, conseguiu o Governo que os preços dos transportes, do pão e do arroz continuassem administrativamente estacionários e sem qualquer alteração desde aquela altura até momento presente.
Não foi anunciada na altura qualquer medida que se destinasse a estimular a produção e o aumento da produtividade, sobretudo no sector agrícola, que emprega maior parte da população nacional. Vários economistas criticaram aquelas medidas por as mesmas não serem sustentáveis e se basearem mais em fundamentos políticos, populistas e eleitoralistas do que propriamente numa base económicamente clara e devidamente estruturada. Na verdade, nunca foi claramente revelada a fonte de onde o Governo retiraria os montantes para aqueles estranguladores subsídios. Tudo o que se ouviu foi que o Governo socorrer-se-ia das poupanças resultantes da redução de viagens dos dirigentes do Estado e do congelamento das promoções na função pública; fontes claramente insuficientes para aquilo que o Governo se comprometia a dar, como subsídios. Ficou assim a ideia clara de que um «buraco» enorme se estava a criar em algum lugar qualquer das contas públicas; «buraco» que um dia se revelaria e, mais uma vez, o povo seria chamado a tapar. Em 29 de Março de 2011, passados sensivelmente seis meses após o anúncio daquelas medidas, o Governo, na voz do seu Ministro de Planificação e Desenvolvimento, Aiuba Cuereneia, veio brindar o povo com novas decisões: - Corte do subsídio aos combustíveis; - Corte do subsídio às panificadoras; - Corte do subsídio ao arroz de terceira; - Introdução do subsídio «aos transportados» na forma de passe; - Introdução do súbsídio de alimentação na forma de «cesta básica» aos cidadãos com rendimentos inferiores a dois mil meticais (cerca de sessenta dólares amercanaos). Portanto, por um lado, o Governo veio a público reconhecer o completo falhanço das medidas anunciadas aquando das manifestações de 1 e 2 de Setembro de 2010. Mesmo que se aceite que aquelas medidas foram sempre tidas como transitórias, fica evidente o falhanço, porquanto o Governo apenas as substitui por outras, que, como veremos, são mais graves do lado do povo, reconhecendo-se assim que aquelas primeiras foram totalmente ineficazes para conter a galopante subida do custo de vida. Passemos a analisar a fundo o alcance e o significado das medidas ora introduzidas. Há que salientar, desde logo, que os cortes dos anteriores subsídios são para todos os cidadãos, havendo, entretanto, restrições quanto aos beneficários das novas medidas introduzidas. Com efeito, no que em específico se refere ao chamado «subsídio para os transportados», o mesmo só irá vigorar nos centros urbanos. Promete o Governo pagar o equivalente a 75% do custo de cada viagem intra-urbana, ficando o cidadão por pagar os remanescentes vinte e cinco por cento. Para materializar a dita medida, introduzir-se-á o passe. Como primeira nota, deve salientar-se que este passe, em princípio, é apenas dirigido aos «trabalhadores» (leia-se trabalhadores do sector formal). Entretanto, nos tais centros urbanos onde pretensamente este passe será introduzido, mais de setenta por cento da força de trabalho e, consequentemente, mais de setenta por cento da produção encontra-se enquadrada no sector informal. Portanto, o tal subsidio aos transportados servirá apenas os que alimentam a pesada máquina burocrática do Estado, deixando de lado uma larga percentagem da população que no dia a dia, enfrentando indiscritíveis difuiculdades, luta por produzir riqueza para este País. A segunda nota importante é mesmo sobre a quase impraticabilidade desta medida. Com efeito, o sector de transportes em Moçambique, nomeadamente nos seus centros urbanos, é simplesmente caótico. Com efeito, no seu dia-a-dia, os cidadãos contam com os serviços das transportadoras públicas, que não cobrem nem dez por cento das necessidades; com um sector de transportes privado, altamente problemático e que se queixa de falta de meios, incentivos e com o sector informal, composto por camionetas de caixa aberta que transporta os cidadãos em condições no mínimo desumana, sob o olhar impotente do Governo. Quem conhece as cidades moçambicanas e já aqui viu como se faz o transporte de pessoas, concluirá facilmente comigo que a ideia de introduzir um “passe” não passa de uma ideia emocional como alguns críticos sociais já avançaram. Não passa de uma miragem, pensar que se possa alcançar, no actual estágio do sector, uma organização capaz de suportar essa ideia. É que uma solução desse nível levanta questionamentos vários. Desde logo, quem deve portar o dito passe? Os trabalhadores do sector formal que não preenchem sequer trinta por cento da força de trabalho? Qualquer cidadão? E sob que critério? Qual o sector de transportes que deverá ser integrado na materialização dessa medida? Apenas o das transportadoras públicas e do sector privado formal? E os informais, não licenciados, que operam sob a tácita aceitação das autoridades e que «caoticamente» contribuem para a movimentação de pessoas e bens? Esses também funcionarão com o passe? Caso não, onde está a justiça desta medida que arbitrariamente beneficia a uns e prejudica outros? Na verdade, tendo em conta que sem subsídios estatais, os combustíveis vão subir significativamente de preço e, por arrastamento, tembém o farão os transportadores, resulta obvio que mesmo com o chamado subsídio aos transportados, os cidadãos continuarão a ter a mesma carga e, eventualmente, passarão a pagar mais do que agora pagam pelo transporte. Já no que se refere à chamada cesta básica também muitos questionamentos se podem levantar. Com efeito, segundo o Ministro da Planificação, a dita cesta (que incluirá arroz, óleo alimentar, arroz de terceira, etc) só será atribuida a cidadãos com rendimentos iguais ou inferiores a 2.000,00 (cerca de sessenta dolares). Não se diz aqui se por «rendimentos» deveremos entender apenas o salário, o que nos levará a pensar que a cesta se destina apenas aos trabalhadores do formal, que podem facilmente provar os seus salários para recebê-la ou se, inversamente, deveremos tomar o termo «rendimentos» no seu mais lato sentido, referindo-nos a todos os activos financeiros que a pessoa adquire por mês, o que quanto a mim será fonte de inúmeros problemas. Como irá a pessoa provar que tem rendimentos abaixo dos dois mil meticais? E que meios terá o órgão estatal para certificar-se desse rendimento do pontencial beneficiário da dita cesta básica? Outra nota importante na anunciada cesta básica é o facto de a mesma só se destinar a cidadãos com rendimento igual ou inferior a dois mil meticais. Ora, em Moçambique o salário mínimo é, por regra superior a dois mil meticais, sendo poucos os sectores que pagam a baixo, nomeadamente o sector da agricultura. Assim sendo, estamos diante de uma medida que irá beneficiar um muito reduzido grupo populacional, porquanto o grosso, mesmo recebendo o salário mínimo, encontra-se acima dos dois mil meticais e, por consequência não tem direito à cesta básica. Significa isto dizer que para esse enorme grupo populacional – que aufere salário mínimo em montante equivalente ou superior a sessenta dólares – resta apenas confrontar-se com a actuação dos mercados, enfrentando os terríveis choques que se avizinham. O preços dos produtos básicos como o combustível, o arroz e o pão, já têm subida anunciada e, pelo andar das coisas, a factura vai cair sobre o lado maias fraco: o do povo. Ainda sobre a anunciada cesta básica, não posso deixar de notar que até o momento presente, o Executivo ainda não se pronunciou sobre os agentes comerciais encarregues pelo abastecimento mediante a apresentação das senhas. Analistas acreditam que este será mais um processo sem stransparência, propiciando a corrupção, já que ninguem conhece os critérios de indicação dos abastecedores. Espero que antes da introdução da medida, este ponto seja bem esclarecido ao povo. Sem surpresas, o FMI já veio aplaudir estas recentes medidas, classificando-as como «medidas corajosas», um verdadeiro elogio do Diabo, elogio de sabor amargo. Os analistas dos eventos sociais e, nomeadamente, os economistas moçambicanos já afirmam claro que estas medidas são paliativas, insustentáveis e desfocalizadas, porquanto não tocam o cerne do principal problema do País: a falta de produção. Parece haver maior interesse em abraçar medidas de impacto aparente, enfeudadas na lógica do populismo do que em seguir pelo caminho do apoio e incentivo à produção e aumento da produtividade. O momento é de crise e a criatividade e empenho dos governantes tendem a ser a peça chave para a volta que se tem de dar à tal crise. O povo quer trabalhar, mas o Governo deve deixá-lo trabalhar e motivá-lo para isso. O momento não é de burocracia pesada e inútil, do despesismo, da pequenez partidária e de palmadinhas no ombro dos corruptos; o momento é de união de forças porque o País está sob ataque. Sob o ataque de uma crise que não criou mas que, contrariamente ao que se pensava, vai mesmo ter de sofrê-la. As medidas anunciadas destinam-se a vigorar a partir de Agosto próximo. Até lá, muita coisa pode acontecer, desde o aligeiramento, o agravamento até a anulação das medidas antes mesmo de elas entrarem em vigor. Tem assim o executivo moçambicano um tempo para medir o pulso popular e, de certo modo, conter a fúria do povo, muito avesso a alterações bruscas do custo de vida. É mesmo caso para dizer que até lá, o povo vai se divertindo com este «pão» e com estes «espectáculos de circo» - panem et circenses à moçambicana – mas de Agosto em diante, ninguém sabe o que vai acontecer. Com a continuação do ambiente de paz, o País pode muito bem enxotar a crise, mas isso implica união de esforços, abnegação e entrega de todos pela causa nacional. A ver vamos! Gil Cambule |